sábado, 29 de outubro de 2011

a lucidez perigosa



Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço.
Além do que:que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

CLARICE LISPECTOR

domingo, 23 de outubro de 2011

incógnita




Incógnita esta tua chegada
De repente, fez-se o azul.
A clarear meus dias nublados
A emoldurar-me nas noites abissais
A degustar de mim
O resgate dos versos derramados
Na soleira do meu tempo
Incógnito desejo
Que embora distante estejas
Íntimo almejado são teus beijos madrigais
Na ânsia deste novo que principia
Respiro e navego no teu aroma,
Êxtase guardado sob o véu da tua ternura
Calada e distante, confesso
Meu vislumbre por sobre a tua vinda
A rechear-me os dias, já azulados,
Com outra incógnita:
O germinar deste amor
Que agora respira em mim.

domingo, 16 de outubro de 2011

para matar um grande amor



Muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. No entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida. É aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. O amor relativiza; a renúncia absolutiza. E não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos. Arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. Falta-lhes exatamente o dom da finitude, abrupta e intempestiva. Qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição. Não se vive o amor; sofre-se o amor. Sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. Ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate e por fim se extingue e nos extingue com ele. Aponta numa única direção: o rompimento. Pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão.
Mas não se pense que esse é um gesto de covardia. O grande amor exige isso. O rompimento é sua parte complementar. Uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. Morrer um pouco para se continuar vivendo. E poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado.
Há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema. O cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto (remember Casablanca), um entroncamento rodoviário. Pode ser uma praça ou uma praia deserta. Falésias ou ruínas de uma cidade perdida. Pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível. As nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. Os cabelos da amada, longos e escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. Há sutis crispações, um discreto arfar de seios. E os olhos, ah!, os olhos... A visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder.
Uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. Que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...
 
 
JAMIL SNEGE

sábado, 15 de outubro de 2011



"Coragem,às vezes,é desapego.É parar de se esticar,em vão,para trazer a linha de volta. É permitir que voe sem que nos leve junto.
É aceitar que a esperança há muito se desprendeu do sonho.É aceitar doer inteiro até florir de novo.É abençoar o amor,aquele lá,que a gente não alcança mais."

ANA JÁCOMO

coração de professor

Coração de professor,
É adulto e é criança.
É praça no meio da rua,
Onde caminha a esperança.

É campo repleto de flores.
É perfume e inspiração.
É berço de sonhos possíveis.
É voz, melodia e canção

Coração de professor,
É espaço de amizade.
É céu azul de verão,
Onde voa  a liberdade.

É terra grávida de amor,
Que faz brotar a semente,
Que torna a vida mais vida,
Que torna a gente mais gente.
 


ALUÍSIO CAVALCANTE JR.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

fresta



Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

FERNANDO PESSOA

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

incógnita



Incógnita esta tua chegada
De repente, fez-se o azul.
A clarear meus dias nublados
A emoldurar-me nas noites abissais
A degustar de mim
O resgate dos versos derramados
Na soleira do meu tempo
Incógnito desejo
Que embora distante estejas
Íntimo almejado são teus beijos madrigais
Na ânsia deste novo que principia
Respiro e navego no teu aroma,
Êxtase guardado sob o véu da tua ternura
Calada e distante, confesso
Meu vislumbre por sobre a tua vinda
A rechear-me os dias, já azulados,
Com outra incógnita:
O germinar deste amor
Que agora respira em mim.
 
 
FÁTIMA VENUTTI

terça-feira, 11 de outubro de 2011

saudade


Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.
Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

MARTHA MEDEIROS

sábado, 8 de outubro de 2011

por não estarem distraídos


Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

CLARICE LISPECTOR

Deus


Deus costuma usar a solidão
para nos ensinar sobre a convivência.

Às vezes, usa a raiva,
para que possamos compreender
o infinito valor da paz.

Outras vezes usa o tédio,
quando quer nos mostrar a
importância da aventura e do abandono.

Deus costuma usar o silêncio para nos ensinar
sobre a responsabilidade do que dizemos.
Às vezes usa o cansaço, para que possamos
compreender o valor do despertar.

Outras vezes usa doença,
quando quer nos mostrar
a importância da saúde.

Deus costuma usar o fogo,
para nos ensinar sobre água.
Às vezes, usa a terra,para que possamos
compreender o valor do ar.

Outras vezes usa a morte,
quando quer nos mostrar
a importância da vida".

Fernando Pessoa

o amor quando se revela




O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe,
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

é proibido



É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.

É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,

Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos

Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,

Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,

Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,

Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se
desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,

Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,

Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,

Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.

PABLO NERUDA

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

professores nunca morrem


Quando o sopro de vida que há em mim
For viver em outros planos,
Quando a minha presença se transformar em lembranças,
Quero que as cinzas do meu coração
Sejam derramadas em uma escola.

Se possível, quero que estejam presentes neste momento,
Os meus amigos, que muito me ensinaram sobre a força dos sonhos.
Os meus alunos, que souberam me mostrar que esperanças nunca morrem.
A minha família, onde aprendi as melhores lições sobre o amor.

Se possível, será uma tarde serena.
Alguém trará um violino e tocará a minha música preferida:
“Em algum lugar do passado”.
Talvez alguns poemas que escrevi possam ser lidos
(Sem tristeza, mas inundados de verdades),
E ao som de risos, serão contadas histórias que falem
Do amor que sonhei e que nunca deixei de acreditar.

Imagino que possa haver lágrimas.
Caso elas caiam dos olhos dos que me amaram,
Que sejam apenas suficientes para molhar a terra
Onde o meu coração foi semeado,

E de onde brotarão as sementes dos sonhos
Que crescerão e darão frutos em outras vidas.
Não serão colhidas flores para enfeitá-lo,
Pois as flores deverão permanecer nos jardins
Para alimentar de vida os passarinhos.

E ao final da tarde, quando as pessoas se despedirem
E forem para suas casas,
Levarão em suas lembranças a certeza:
Professores são eternos.
Representam a união de muitos sonhadores do passado,
E também a inspiração de muitos sonhadores do futuro.
E viverão para sempre em cada sonho que fizeram crescer.

Quando o sopro de vida que há em mim
For viver em outros planos,
Quando a minha presença se transformar em lembranças,
Quero que as cinzas do meu coração
Sejam derramadas em uma escola.
E que no lugar onde meu coração for semeado,
Brotem sementes de infinitos sonhos
Que crescerão e darão frutos em outras vidas.
 
 
ALUÍSIO CAVALCANTE JR.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

um outro olhar




Ele amava.
Entregava-se ao amor como se fosse onda abraçando o mar.
Falava de amor como quem respirava,
E a medida que amava também inspirava o amor.
Para ele amar justificava a vida.
Não o amar pelo amar,
Mas o amar que libertava,
E fazia com que os que passassem pela sua vida
Tornassem-se maiores e melhores.
Para os que não o entendiam,
Ele era paciente na explicação do amor.
Gostava de explicá-lo.
Não de modo mecânico ou conceitual,
Mas por meio de poemas, frases, sorrisos,
Abraços, olhares, gestos e exemplos.
E no final de cada explicação, repetia a mesma certeza:
AMAR EXIGE DISCIPLINA.
DISCIPLINA É UM MODO DE AMAR.
Para os que ainda não o entendiam, ele continuava:
Disciplina é a entrega que se faz a um objetivo.
Entregar-se a este objetivo,
É fazer-se pássaro que abre as asas e se entrega aos céus,
E a medida que encontra os ventos,
Disciplina-os sobre as suas asas para alcançar os seus objetivos.
Falar de disciplina exige que se explique a sua importância.
Não exigi-la de modo sem sentido,
Mas explicá-la de modo que todos que passem por ela,
Façam de si e dos que passam pela sua vida,
Pessoas maiores e melhores.
É ensinar e ao mesmo tempo inspirar.
É corrigir e ao mesmo tempo ser paciente
Com os que não a compreendem de imediato.
É acreditar e ao final do dia
repetir a mesma certeza:
AMAR EXIGE DISCIPLINA.
DISCIPLINA É UM MODO DE AMAR.

ALUÍSIO CAVALCANTE JR.